Os discursos da "Periferia" – a coisificação da criação artística e cultural
Abarcando a muitos com alcunhas como "estética da periferia" e "gueto globalizado" os discursos que roubam a fala e mimetizam o conhecimento de parcela dos nossos criadores é hoje um grande negócio para a economia cultural.
Emparelhar a produção dos criadores, artistas e pensadores, que não vivem sob o teto dos bairros da elite, classificando-o essa produção com termos como "estéticas das periferias metropolitanas", "gueto globalizado", "constituição do comum" e outras alcunhas, parece ser a nova moda da mídia e acadêmicos.
Os que assim adotam tais denominações, longe de conceber esses espaços de convivência plurais (homem/mulher/criança/bicho/planta/ construções) em sua heterogeneidade, singularidade e afetos, procuram abarcar em uma linguagem que cai muito bem ao gosto do "status quo" de uma elite cultural e intelectual que pesa, mede, cartografa, mapeia e pesquisa, tornando "coisas" a todos os que não habitam nos "bairros nobres" das metrópoles, estes sim, espaços identificados singularmente em seus nomes, cantados em prosa e verso, e dramatizados em cadeia nacional, cujo o imaginário e a singularidade parece coabitar e pertencer apenas os que neles o partilham como morada.
Quando a palavra "periferia" não havia caído no gosto duvidoso da mídia e da elite artística e cultural nominava-se aos bairros afastados do centro das capitais e cidades pelo seu nome. Eram espaços urbanos que existiam em suas singularidades: Neves, Coqueiro, Marambaia, Ramos, Barreto etc. Hoje, todos esses espaços, legitimados em sua história e afetos foram jogados no lugar comum de "periferia", então criou-se uma "estética da periferia", o que se tornou mais um produto a ser explorado de forma comercial, pela mídia, intelectuais, acadêmicos e produtores. Exposições, programas de TV, Seminários etc. e o mais interessante é que em sua maioria concebidos e produzidos por pessoas que não moram nela.
Temas como a busca eterna da identidade perdida, questão que nossos acadêmicos que versam sobre cultura adoram verborragir e dar voltas e mais voltas sem sair do lugar, partilham e importam ideias e conceitos como o "gueto globalizado", a "estética da periferia" e a "Constituição do Comum", já que hoje, os mesmos que adotam tais termos, por vezes vivem em espaços perdidos de seus sentidos simbólicos e afetivos expressos numa porta antiga, numa madeira ou grade descascada, e numa rua de areia, já que os espigões proliferam pelos bairros centrais das metrópoles, para onde anseiam ir as massas das elites econômicas, culturais e intelectuais do Brasil.
Na ausência da voz dos reais representantes dos temas tecnobrega, funk, hip-hop, etc. o que se ouve são falas desapropriadas que partem apenas da observação passiva e afastada, que coloca-nos a todos como "objetos de estudo" e nos "coisificam" e "periferificam". Ecos distantes angustiantes e angustiados, no entanto cientes do seu papel de oferecer a um público "diverso" o pensamento da produção da elite acadêmica e intelectual do país.
Os discursos culturais, reflexos de uma história que ditou a produção cultural e tem ditado as políticas públicas partindo do monopólio da região Sudeste ou Sul maravilha, tentam perversamente enquadrar de forma uniforme a riqueza da criação artística e cultural do país, servindo aos jogos do mercado, ao neo-liberalismo, e ao bolso da pequena elite cultural do país que se beneficia dos que não conseguem ou se negam a entrar na máquina criada, e buscam de uma outra forma compartilhar e expressar criações, idéias e arte. Chegando hoje ao absurdo de captarem recursos e produzirem projetos culturais para falar destes, apropriando-se da criação e ideias de um cem números de criadores para mimetizar o conhecimento.
Com propostas de sair de um mar de anônimos os grupos de criadores e artistas que se espalham pelas cidades são agora alvos de produtores e captadores de recursos para que surjam como pessoas físicas e jurídicas, enquadrados num modelo instituído pelas pessoas pensantes que formularam e formulam as políticas públicas e privadas do estado e do mercado hoje no país, agora re-designado de "capitalismo cognitivo".
O que representa realmente o "gueto globalizado"? O que se entende por democracia? E as quantas andam a amnésia coletiva da elite econômica, cultural e artística que dá as coordenadas no país? A "Constituição do Comum" também pode designar a produção acadêmica do país?
[trechos do texto de Natália Amorim, 28/09/2007, cenógrafa, figurinista, arte-educadora, arteterapeuta, técnica em Gestão Cultural pela SECULT - Secretaria de Cultura do estado do Pará, poeta e fotógrafa, atual moradora do Bairro da Marambaia em Belém-PA]